Comentário: Com o Iêmen sob risco de assumir nova ordem, fora do controle de Riad, a Arábia Saudita teve de agir. Qualquer conversa sobre interesses do Irã ou divisões entre xiitas e sunitas só serve para obscurecer o real conflito no Iêmen.
A Primavera Árabe começou na Tunísia |
Ameaçado pela promessa da Primavera Árabe, o regime saudita reagiu em sua península, no Norte da África e na Ásia Ocidental, para sufocar quaisquer tendências republicanas. O levante no Bahrain foi esmagado sem muitos comentários adversos, nem no mundo árabe, nem no “ocidente”. Na Síria, a Frente Islâmica apoiada pelos sauditas fez de tudo para sufocar qualquer sensibilidade democrática de independência que florescesse na rebelião.
No Egito e na Líbia foi mais difícil dar jeito na situação, porque aí o problema era a Fraternidade Muçulmana. O general Sisi do Egito recebeu com alegria o dinheiro saudita, como pagamento por matar qualquer desafio ideológico substancial contra a autocracia naquela região. A Líbia ainda é campo de batalha dessas sensibilidades, com o general Khalifa Haftar levando adiante a bandeira da ordem saudita.
A intervenção saudita em curso no Iêmen deve ser vista à luz desse impulso geopolítico regional. Dia 25/3/2015, a Arábia Saudita lançou a operação “Tempestade Decisiva”. Despachou seus jatos bombardeiros contra alvos no Iêmen. O ataque foi imediatamente saudado e apoiado pelos EUA e por vários estados árabes (inclusive todos os países do Golfo Árabe, exceto Omã). Não surpreenderam ninguém. Havia tropas sauditas acantonadas na fronteira, e os aviões sauditas já haviam ameaçado o espaço aéreo do Iêmen. Essas aventuras não são novidade para o reino. Em 2009, a Arábia Saudita invadiu o Iêmen – e já foi ataque contra as mesmas forças sociais que estão sendo novamente atacadas agora.
Proteger a ordem do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG)
Qual o alvo, no Iêmen? Poderia ser a al-Qaeda na Península Árabe [orig. al-Qaeda in the Arabian Peninsula (AQAP)], cujos suicidas-bombas já haviam tentado assassinar membros da família real (o atual ministro do Interior príncipe Mohammed Bin Nayef quase foi morto em 2009 pelo “bombardeador anal” Abdullah al- Asiri)? Mas, não. Nenhum dos bombardeios atingiu qualquer alvo associado à AQAP – concentrados nas fronteiras ocidentais do Iêmen e distribuídos pelas cidades do deserto oriental.
Abdullah al- Asiri, o bombardeador anal |
Em vez disso, os bombardeios sauditas e de outros árabes do Golfo atingiram alvos associados aos rebeldes houthis e a forças leais a Ali Abdullah Saleh, ex-presidente do país. E por que os sauditas estariam atacando os houthis e Saleh? Os sauditas dizem que intervieram para proteger a legitimidade do presidente do Iêmen, Mansour Hadi. Hadi foi eleito em 2012, em eleições nas quais não teve concorrente. Sua eleição foi parte de um negócio arranjado pelos sauditas e os estados do Golfo Árabe. Nesse negócio não se cuidou de nenhum dos problemas trazidos à tona pela rebelião popular de 2011 no Iêmen. Dois anos mais tarde, os mesmos problemas voltariam a aparecer.
Que problemas subjacentes eram esses? Como em outras rebeliões populares, o levante de 2011 no Iêmen concentrara as atenções na remoção de Saleh – mas havia demandas poderosas, a favor de uma divisão social menos injusta e do fim da corrupção na burocracia governante.
Acampadas por todo o Iêmen falavam nesse registro – algumas queixas identificáveis, mas quantidades enormes de frustração difusa, contra as manipulações, por Saleh, da “Guerra ao Terror” para seus próprios objetivos grupais, incluindo a transferência de recursos do governo para gerar lucros privados. As várias forças políticas que apareceram nas manifestações de rua indicavam que o regime de Saleh não tivera resposta para nenhum dos antigos problemas do Iêmen. O arranjo comandado pelo CCG que conduziu à troca de Salah por Hadi nada fez além de encobrir os mesmos persistentes problemas estruturais. Os sultões da Arábia montaram um arranjo sobre areias movediças.
As agendas de 2011, mal encobertas pelo governo de Hadi, reapareceriam necessariamente. A questão era só quem seria o agente do reaparecimento, e de natureza teria o reaparecimento. Dado o ambiente altamente militarizado no Iêmen, era pouco provável que os partidos políticos, muito fortemente controlados, conseguiriam levar adiante a bandeira do combate à corrupção e da justiça social. Os socialistas, os nasseristas e os liberais não tinham os meios mínimos necessários para atacar Hadi. O descontentamento reinava supremo.
Houthis do grupo Ansarallah chega em Sanaa |
Em 2014, o grupo Ansarallah (organização guarda-chuva dos houthis), chegou à capital do Iêmen, Sanaa, trazendo suas reivindicações específicas, além das muitas demandas difusas de grandes porções da população do Iêmen (incluindo al-Hirak, o Movimento Pacífico Sulista, e o movimento da juventude). A ONU – pelo enviado Jamal Benomar – conseguiu negociar um importante acordo, chamado “Acordo da Parceria da Paz Nacional”, de setembro de 2014.
Um pacto progressista
Embora a maior parte da discussão do acordo concentre-se nos compromissos políticos, os dois artigos mais longos tratam de temas sociais e políticos. O Artigo 3 tratava do próprio sustento da população. Uma comissão econômica seria criada para definir preços de produtos de primeira necessidade, sistema racional de coleta de impostos, eliminação dos trabalhadores fantasmas, reforma dos subsídios aos combustíveis, investimentos em infraestrutura e aumento nos programas de assistência social aos mais pobres. O Artigo 4 tratava em profundidade da necessidade de aumentar-se em 50% o Fundo Social de Bem-Estar, aumentar o salário dos funcionários públicos, e aumentar, no orçamento para 2015, os investimentos previstos para educação e saúde públicas. Esses investimentos, o acordo previa explicitamente, devem “visar prioritariamente os mais pobres e moradores de áreas marginalizadas”.
O surgimento dos houthis em Sanaa, a elaboração desse acordo progressista, o fracasso do mesmo acordo, e o movimento dos houthis para a marcha sobre Aden são eventos que têm de ser vistos à luz dessas queixas e reivindicações explicitadas e nunca atendidas. É a política do Iêmen, baseada nas queixas e reivindicações dos iemenitas, praticamente sem quaisquer vias institucionais para encaminharem suas demandas, numa estrutura engessada de estado.
Nada mais conveniente que encobrir e ocultar todos esses debates sociais, com “ideias” e “análises” segundo as quais os houthis não passariam de “agentes” a favor do Irã. Convém, isso sim, à Arábia Saudita apresentar qualquer reivindicação de bolsões de xiitas oprimidos na porção leste do território saudita e no Leste da Ásia como infiltrações dos iranianos – o mesmo esquema que é conhecido no Movimento Futuro no Líbano, como “O Esquema Persa”. Se operários da indústria do petróleo fazem greve nas províncias do leste da Arábia Saudita, são logo acusados de trabalhar a favor de Teerã; tudo muito parecido com o que se viu no levante no Bahrain.
Talibã no Af-Pak (Afeganistão e Paquistão) |
Não há dúvidas de que as ambições do Irã cresceram imensamente desde que os EUA, para grande alegria em Teerã, removeram em duas pinceladas os maiores inimigos que o Irã enfrentava – o regime dos Talibã no Afeganistão e o regime do partido Baath no Iraque. A confiança no Irã em terras árabes e na Ásia Central cresceu muito, mais isso não implica que qualquer ação de qualquer grupo xiita ortodoxo na região seja de algum modo subordinada ao governo do Irã. A política local tem peso enorme, como também as políticas tentaculares da infinita ambição dos sauditas – que são tão intervencionistas, se não ainda mais, que as de Teerã.
Os sauditas não poderiam permitir aquelas mudanças no status quo. O Iêmen estava sob o risco de se encaminhar na direção de uma nova ordem, que poria fim ao controle saudita. Os sauditas acumularam tropas na fronteira, ameaçando uma invasão. Os EUA apoiavam o movimento saudita, que então já voava pelos céus do Iêmen. Qualquer conversa sobre “agentes” do Irã e divisões xiitas-sunitas deixam de fora a essência do que se passa hoje no Iêmen – a luta real, envolta em agendas políticas pouco claras, trava-se entre as forças do levante popular de 2011 e a velha guarda. Ao lado, está a al-Qaeda, à espreita. Pronta para se aproveitar do caos.
A Arábia Saudita reuniu em volta dela toda a mais velha confederação internacional. Nos céus voam seus amigos do Golfo Árabe. Os dois principais aliados – por questões de relacionamento histórico – são o Marrocos e o Paquistão. Em 1962, Arábia Saudita, Marrocos e Paquistão criaram a Liga Mundial Muçulmana (Rabita al-Alam al-Islami) e depois, em 1969, os mesmos patrocinaram a criação da Organização de Cooperação Islâmica. O objetivo da LMM e da OCI era minar o nacionalismo secular no Terceiro Mundo, promovendo um islamismo orientado pelos sauditas; e sobrepujar a agenda de desenvolvimento socialista do Movimento dos Não Alinhados (MNA). Essas plataformas tiveram forte impacto em todo o mundo, inclusive em bolsões que mais tarde se manifestariam como centros da al-Qaeda – como o Afeganistão, o Paquistão, a Chechênia e o Sudão. Essa aliança reacionária e senil está agora agressivamente em ação contra o povo do Iêmen.
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[*] Vijay Prashad é professor de estudos internacionais no Trinity College. Dentre outros livros, é autor de The Darker Nations: A People’s History of the Third World eArab Spring, Libyan Winter.
Publica artigos regularmente em Asia Times Online, Frontline Magazine e Counterpunch. É usualmente entrevistado pela TRNN - The Real News Network sobre Geopolítica e Política internacional; é também Editor-Chefe do LeftWord Books, Nova Delhi. É colunista de al-Araby al-Jadeed e Information Clearing House.
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