JAN 13, 2016 Revista Diálogos do Sul
Isabela Vieira – Repórter da Agência Brasil*
Agência Brasil: Quem era Nimr al-Nimr e por que ele foi executado?
Beatriz Bissio: No mundo islâmico, não existe uma instituição que se equipare à Igreja do mundo cristão. Então, quando se fala de clérigos, trata-se de eruditos que dedicam suas vidas ao estudo de textos sagradas, muitas vezes atuando até como juízes e aplicando a sharia (a lei islâmica). Nimr al-Nimr era um erudito, um conhecedor da religião que ganhou respeito na região, nos meios muçulmanos, e vinha, particularmente, defendendo a minoria xiita da Arábia Saudita – único país, junto com o Catar, aliás, que tem como religião oficial, uma das leituras possíveis do islã, uma leitura fundamentalista, que é o whahabismo. Essa religião é muito hostil ao xiismo. E Nimr al-Nimr, esse clérigo, xiita, fazia uso do respeito que tinha para denunciar a situação dessa minoria no Sul e Leste do país.
Agência Brasil: A Arábia Saudita tinha conhecimento da reação que a execução poderia provocar no Irã?
Beatriz Bissio: Um grupo importante de estudiosos, do qual eu faço parte, contava que a Arábia Saudita sabia da reação que essa execução iria causar. Porque era muito difícil que o governo saudita pudesse ignorar que essa morte suscitaria em uma reação no universo xiita e em seu principal representante, o Irã. Ele poderia ter sido executado antes, depois ou poderia ter tido sua pena comutada.
Na nossa opinião, a decisão de executar esse líder religioso, de alguma forma, mesmo com as fortes reações, permite criar uma espécie de cortina de fumaça para os graves problemas internos da monarquia saudita, que afloraram com a queda dos preços do petróleo.
Agência Brasil: Quais são esses graves problemas sauditas?
Beatriz Bissio: Há uma interpretação que coloca que a Arábia Saudita está submetida a fortes pressões, de diferentes origens. Uma das pressões é provocada pela queda dos preços do petróleo.
A Arábia Saudita tem uma política de longa data de subsídios importantes ao consumo de água, de energia elétrica e combustíveis, financiada pelo petróleo, que em 2014 superava US$ 100 [o barril], hoje está entre US$ 30 e US$ 40.
Há uma espécie de acordo entre a monarquia saudita, altamente questionada, e uma população que se submete a arbitrariedades desse governo por causa das benesses que a permitem desfrutar de um bom nível de vida, mesmo que incomparáveis às mordomias da monarquia Al Saud. Neste momento, começa a haver uma inquietação social com a qual o governo tem que lidar, com corte em programas sociais financiados pelo petróleo, somada a difícil situação no Iêmen, onde o lado que a Arábia Saudita resolveu apoiar está perdendo a guerra militarmente.
Há também a situação nada confortável em relação ao Irã, desde que os persas fizeram um acordo com o Ocidente sobre a questão nuclear. Com o acordo, em breve, Teerã se verá livre de sanções econômicas e poderá voltar a produzir petróleo como antigamente, quando chegou a retirar 4 milhões de barris por dia. Hoje, produz 800 mil.
Agência Brasil: A oposição entre religiosos sunitas e xiitas pode agravar o quadro?
Beatriz Bissio: Os especialistas estão convencidos de que o principal ingrediente desse conflito entre Arábia Saudita e Irã não é religioso. É uma disputa de poder por hegemonia no Oriente Médio. São dois projetos políticos diferentes e antagônicos que estão em jogo. O projeto saudita situa o país como grande potência do Oriente Médio, sendo um aliado fundamental do Ocidente, nominalmente dos Estados Unidos, que tem bases militares na Arábia Saudita – uma parceria fundamental para a política dos EUA na região. O Irã tem um projeto diferente, um desenvolvimento autônomo da região. Por isso, a ênfase do Irã em se colocar ao lado do governo da Síria, entendendo que o governo da Síria, apesar de controverso, é um governo que defende uma postura de independência do Oriente Médio. Por isso, mais próxima da Rússia, é também adversária da Arábia Saudita.
Agência Brasil: Como a escalada de tensão entre os países, como ficam as negociações de paz em países onde Arábia Saudita e Irã eram intermediadores, como na Síria?
Beatriz Bissio: A situação da Síria é a mais complexa. Depois de cinco anos de conflito – que é um conflito altamente internacionalizado, não é mais guerra civil – depois de grandes perdas humanas e milhares de pessoas deslocadas, conseguiu-se fazer um acordo para levar o tema à mesa de negociações com as principais potências ocidentais, além de Irã e Arábia Saudita. Com a ruptura das negociações diplomáticas entre os dois países, não sabemos como ficará.
Agência Brasil: Nesse cenário, grupos extremistas ganham força?
Beatriz Bissio: O que aconteceu em países, como Iraque e Líbia, nos alertam para o tipo de intervenção que vem de fora. Com ou sem aval das Nações Unidas (ONU), em geral, sem o aval, essas intervenções depõem governos, com objetivo de criar situações democráticas e proteger direitos humanos, mas o resultado é o caos. Aí está o caso da Síria, um governo questionado, mas que é um governo constituído. A negociação tem que passar pelo direito internacional, com a participação, inclusive desse governo. Outra coisa, é um grupo terrorista, como Estado Islâmico, onde o combate é necessário, evidentemente. Temos que ver as formas eficazes de preservar a população civil, que conta a maior parte dos mortos e não pode ser atingida.
Agência Brasil: Como seria possível esse combate?
Beatriz Bissio: A Rússia já colocou, com muita clareza de provas, que há um discurso cínico daqueles que dizem combater o Estado Islâmico (EI). Mostrou com fato, por exemplo, que a Turquia está comprando o petróleo que o EI vende [o grupo detém o controle de reservas no Iraque]. Ao mesmo tempo, a Turquia diz que está combatendo o EI. Como está combatendo e ao mesmo tempo dando recursos para se armarem e melhorarem sua própria infraestrutura? Há que se rastrear, e temos ferramentas para isso, quem compra o petróleo, quem vende as armas. São várias formas.
Agência Brasil: Outra polêmica na região, a questão palestina, pode ser afetada?
Beatriz Bissio: A questão palestina está por trás desse conflito entre Arábia Saudita e Irã, sim. O Estado saudita não tem tido uma atitude de solidariedade, apesar de árabe, em relação à questão palestina [em referência a territórios ocupados e violação de direitos humanos por Israel]. Já o Irã, tem uma atitude importante, ativa. A não resolução da questão palestina aflora sempre com outras roupagens.
Agência Brasil: Como Brasil e a América Latina tem assistido essa escalada de tensão?
Beatriz Bissio: O Brasil tem defendido, de uma forma correta, que o destino do mundo árabe e do Oriente Médio, incluindo o Irã, que é persa, tem que ser definido pela própria região. Ou seja, defendendo a legalidade internacional, contra uma intervenção estrangeira. Em princípio, essa ruptura de relações entre Irã e Arábia Saudita, com apoio de outros Estados, não se prevê um aumento imediato de preços ou escassez de petróleo, justamente pela superprodução. Mas, é lógico, é uma situação volátil. Podemos lembrar que, em 2012, houve um ataque de hacker a principal empresa produtora de petróleo na Arábia Saudita e centros de computadores ficaram fora do ar. A produção, em si ,não foi afetada, mas as atividades da empresa, sim, durante algumas semanas. De 2012 para cá, os hackers têm avançado, então, sempre pode ter algum evento que desestabilize o cenário.
*Beatriz Bissio foi editora de Cadernos do Terceiro Mundo e é do núcleo fundador de Diálogos do Sul
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