4/1/2016, Salah Lamrani, Blog
“Desde que nascemos, vivemos sob opressão, intimidados, perseguidos, vivemos sob terror, a ponto de que até os muros nos davam medo. Até os muros! Há alguém nesse país que não tenha sofrido opressão? Tenho mais de 50 anos, meio século. E desde que vim ao mundo jamais me senti seguro nesse país, em lugar algum, desde que nasci. Somos continuadamente acusados, ameaçados e agredidos por todos os lados… Nosso peito continuará nu diante das balas deles; nossas mãos, desarmadas; mas nosso coração estará sempre cheio de fé. Não nos resta alternativa: viver nessa terra como homens livres e dignos, ou ser enterrado com honra depois do martírio. Nunca deixaremos de denunciar a opressão que vocês nos impõem e de reivindicar nossos direitos” Nimr al-Nimr, 7/10/2011.
A mídia-empresa ocidental, no ocidente e em todo o mundo árabe, noticiou fartamente a execução, por decapitação, de Nimr Baqer al-Nimr, destacada autoridade xiita saudita, e de outros 46 sauditas – a maioria dos quais sunitas –, acusados de terrorismo e/ou de sedição.
Também deram ampla divulgação às reações virulentas do mundo xiita, de Sayyid Ali Khamenei, Guia Supremo da República Islâmica do Irã, a Sayyid Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah (que chegou a falar de um ato de suicídio da dinastia reinante dos Sauds), passando pela de Sayyid Ali Sistani, a mais alta autoridade religiosa do Iraque.
Mas, apesar da divulgação mínima, quase inexistente, outros movimentos e personalidades também condenaram a execução, no Iraque, no Paquistão, na Índia, no Iêmen, no Bahrein e no Líbano, notadamente o Conselho das Fatwas iraquiano (sunita), a Frente Popular para a Libertação da Palestina, FPLP, e organizações de defesa dos direitos humanos.
Na maioria das notícias, a tônica foi o caráter sectário do evento, muitas vezes também com comentários sobre uma “fratura” cada dia maior entre sunitas e xiitas, especialmente entre a Arábia Saudita, berço do Islã e “coração” do sunismo, e o Irã, “coração” espiritual do xiismo, dois “corações” em aparente luta pela dominação do Oriente Médio.
O dissenso milenar entre os (i) “sunitas” ou “fieis à Escola dos Califas” (Companheiros que dirigiram o mundo muçulmano depois da morte do Profeta), de um lado; e, de outro lado os (ii) “xiitas” fieis à (fr.) Ecole de la Demeure ([lit. “Escola do Lar” (NTs)], fieis aos imãs da linhagem do Profeta, figuras de ‘oposição’), é obsessivamente apresentado como ‘chave’ para decifrar as lutas e guerras impiedosas que atormentam a região.
E assim continua, mesmo depois de dez meses em que a coalizão EUA-sauditas devasta o Iêmen zaidita (ramo minoritário do xiismo), e da luta contra o Daesh, na qual se enfrentariam (i) uma aliança “tradicional” (EUA e Europa, aliados à Arábia Saudita e a outras petromonarquias sunitas do Golfo) e (ii) uma aliança “ortodoxa” (Irã, Iraque e Hezbollah xiitas, Síria alauíta – outro ramo xiita minoritário – e Rússia).
Essas análises, além de simplórias, traduzem conhecimento insuficiente da história do mundo árabe-muçulmano e da geopolítica do Oriente Médio; e erguem-se sobre pressupostos falaciosos que não resistem nem ao primeiro exame.
De modo revelador, essas análises sequer se propõem as perguntas mais básicas – afinal, se trata, para começar, da execução de uma importante figura religiosa.
Nimr al-Nimr estava preso desde julho de 2012, e fora condenado à morte já há mais de um ano. Nessas circunstâncias, seria razoável esperar que as análises começassem por considerar os motivos, alegados, pressupostos e/ou mais prováveis da condenação e da repentina execução.
Pode-se começar, então, com outra pergunta óbvia – Quem foi Nimr al-Nimr? – que a mídia-empresa absolutamente não fez. Ao que parece, a mídia-empresa ‘decidiu’ que ser xiita, em país sunita, ‘explicaria tudo’.
Quem foi Nimr al-Nimr?
Foi, claro, autoridade religiosa xiita (um “Xeique“), que estudou teologia no Irã, antes de passar a pregar em sua província natal, Qatif, na Arábia Saudita.
Só até aí, já é preciso saber que declará-lo “autoridade religiosa” não basta para caracterizar Nimr al-Nimr, porque a noção de “laicismo” não existe em terras islâmicas. Incontáveis altas autoridades políticas são clérigos (Hassan al-Banna, Sayyid Qutb, Ruhullah Khomeini, Hassan Nasrallah, etc.).
Essa é característica que se aprofundou depois dos esforços ocidentais – bem-sucedidos – que visavam a marginalizar e/ou quebrar as pernas de todos e quaisquer governos seculares (no Egito de Nasser, no Iraque de Saddam Hussein, na Líbia de Gaddafi, na Síria de Bachar al-Assad), com os resultados que se conhecem.
Por tudo isso, Nimr al-Nimr tem de ser apresentado, claro, como pregador religioso, mas também, inegavelmente, como importante figura política da oposição ao governo dos sauditas, muito popular entre os jovens, com ecos que ultrapassam em muito a religião dele e as fronteiras de seu país natal, sobretudo por causa do carisma e da coragem de que sempre deu mostras na luta contra as gritantes injustiças da sociedade saudita.
Nimr al-Nimr denunciava, sim, com extrema virulência a dinastia dos Sauds, exigia reformas, a democratização do país, e o fazia sem medo de uma monarquia medieval cuja preocupação com direitos humanos e sociais o mundo conhece bem; que considera herética qualquer manifestação de opinião divergente; e que pune “pelo sabre” (decapitação) ou pela crucificação tudo que lhe cheire a heresia. Nimr al-Nimr esteve preso várias vezes, com certeza foi várias vezes torturado por causa da veemência de suas denúncias e por participar de manifestações, apesar de toda a violência que o povo sunita sempre enfrentou, repressão a tiros, prisões abusivas, torturas, etc.
Em 2012, o diário britânico The Guardian descrevia essa situação como “o conflito menos noticiado de todo o Oriente Médio“.
Para o Guardian, essa omertà jornalística no ocidente, para tudo que tivesse a ver com a ‘primavera árabe’ saudita, explicar-se-ia pela monumentalidade dos contratos de venda de petróleo e de armas assinados entre a petromonarquia e Washington e Londres – e Paris –, dos quais é aliada estratégica.
A situação dos direitos humanos na Arábia Saudita aparece assim descrita no relatório 2014-2015 da Anistia Internacional:
Não há como não ver que quem decida engajar-se na luta política na Arábia Saudita, se quiser trabalhar para dar voz à oposição, sabe que põe em risco a própria vida.
Nimr al-Nimr foi figura de grande destaque nesse movimento de contestação pacífica, que exigia respeito aos direitos humanos, liberdades civis e, contra todas as provocações e sevícias às quais se expunham os manifestantes. Um dos sobrinhos de Nimr al-Nimr, adolescente de 17 anos, que também foi preso, torturado e condenado à morte, aguarda a execução. Nada disso afastou xeique al-Nimr da não violência.
O mesmo vale para o movimento de protesto no Bahrein que se mantém desde 2011, e cujos dirigentes mantiveram o caráter pacífico, apesar da repressão mais sangrenta e da intervenção das forças armadas sauditas – contra a qual houve várias manifestações na própria Arábia Saudita, com ativa participação de Nimr al-Nimr. No Bahrein, como na Arábia Saudita, os manifestantes pediam, em primeiro lugar, a democratização do país, como todos os demais movimentos da parte espontânea da chamada ‘primavera árabe’, especialmente na Tunísia e no Egito.
Mas, se vários desses movimentos foram noticiados pelos veículos da mídia-empresa árabe e ocidental, que, em linhas gerais simpatizavam com as reivindicações legítimas, os movimentos populares no Bahrein e na Arábia Saudita foram ignorados e/ou denunciados como agitação sectária – exclusivamente porque sempre havia grande número de xiitas nas manifestações.
Ora, 15% da população saudita é xiita, concentrada principalmente nas áreas estratégicas da extração do petróleo, no leste do país onde os xiitas são maioria; assim também, 60% da população do Bahrein são xiitas, que lá enfrentam monarquias wahhabistas – um ramo extremista marginal do sunismo, para o qual o xiismo (e muitas escolas sunitas) seria heresia – e heresia ainda maior e mais danosa que democracia, liberdade, direitos civis, etc.
Os movimentos populares na Arábia Saudita e no Bahrein não são sectários, e não exigem respeito aos direitos só dos xiitas – apesar de os xiitas serem, sim, especialmente marginalizados e oprimidos –, mas para toda a população explorada e oprimida por dinastias reinantes tirânicas, os Sauds e os Al-Khalifa.
Eis o que Nimr al-Nimr disse dia 7/10/2011:
“Temos três reivindicações essenciais: reformas políticas na direção de garantir liberdade e dignidade para o povo; liberdade para os presos políticos, encarcerados só porque participaram de manifestações, alguns dos quais continuam presos há 16 anos; e o fim da agressão ao Bahrein.”
Seria talvez alguma reivindicação sectária? Alguma querela entre grupelhos? Claro que não. Aí se vê movimento autenticamente em defesa de liberdade e respeito aos direitos humanos.
Na verdade, nem poderia ser diferente. Pelo próprio fato de que são minoritários no mundo islâmico, alvos eternos e principais vítimas de discursos sectários, os dirigentes xiitas são muito ativamente cuidadosos com essas questões, atentos a qualquer ‘eco’ de sectarismo em suas falas e sempre empenhados em promover a unidade islâmica e cidadã. Por isso tanto denunciam todos os discursos e posições facciosos e qualquer ideia de divisão, de secessão ou de luta armada, acusações que os xiitas sofrem tradicionalmente, para desacreditá-los dentro dos seus próprios círculos locais e assim justificar ataques sangrentos da repressão policial contra eles.
É absurdo, é indigno e é irresponsável caracterizar como sectárias essas reivindicações populares de democracia no mundo árabe. Mas são expostas como se fossem sectárias, apenas porque, como reivindicações por mais e melhor democracia, elas ajudam a promover, lá mesmo, uma imagem mais fidedigna – e mais real – dos xiitas.
Ora… Mas e o que haveria de democrático em trabalhar tanto para demolir a imagem do concorrente xiita, em eleições sempre supostas tão democráticas?!
O que está sendo feito é pintar toda e qualquer reivindicação de mais e melhor democracia como se fosse, em todos os casos, manifestação ‘religiosa’ de grupo predefinido como sectário. Assim, aconteça o que acontecer nas ruas de estados árabes opressores, qualquer movimento popular público sempre poderá se declarado (e rapidamente noticiado para todo o mundo) como manifestação de fanáticos religiosos.
Estigmatize-se um partido, ou um grupo religioso [ou uma classe, Marx acrescenta, cheio de razão (NTs)], ou quaisquer manifestantes e todos os seus porta-vozes, acusando-os de ser fanáticos religiosos violentos… e fica muito fácil negar qualquer legitimidade e qualquer universalidade às demandas deles.
Forçando o exemplo, pode-se dizer que qualquer ato de bandidagem pode ser facilmente convertido em ato de fanatismo religioso a ser manipulado para um ou outro lado: basta que o bandido seja sunita/xiita e a vítima seja xiita/sunita. As evidências de que nenhum dos dois poderia ter adivinhado a religião do outro, e que o assaltante só tinha, por exemplo, interesse no telefone celular, não na religião do assaltado, são apagadas do mundo. E ainda que o assaltante alegue motivação sectária para recrutar asseclas, mesmo assim a causa principal do crime continua a ser o interesse material, não a religião.
Nimr al-Nimr não começava suas falas declarando-se xiita; só se referia à religião se fosse relevante para argumentar a favor da unidade, como naquele mesmo discurso de outubro 2011:
“E quem disse que só xiitas são oprimidos? Teríamos talvez de nos calar, só porque não somos as únicas vítimas de prisão e tortura e repressão? Mas a coisa é ainda pior que isso! Quanto dessas acusações de sectarismo não será simplesmente um modo de criar uma desculpa [para a violência do regime]? Por acaso deveríamos nos calar, se só sunitas fossem presos injustamente? E por quê?
“E quem disse que só xiitas são oprimidos? Teríamos talvez de nos calar, só porque não somos as únicas vítimas de prisão e tortura e repressão? Mas a coisa é ainda pior que isso! Quanto dessas acusações de sectarismo não será simplesmente um modo de criar uma desculpa [para a violência do regime]? Por acaso deveríamos nos calar, se só sunitas fossem presos injustamente? E por quê?
Verdade é que eles prendem sunitas e xiitas aos milhares. Todos somos vítimas [desse regime].
Que fim dão ao dinheiro, aos milhões? O desemprego, as prisões arbitrárias, a população desesperada… Sempre exigimos e continuaremos a exigir respeito aos direitos, para todos os oprimidos.”
Ele também denunciava todos os sectarismos, e fazia lembrar que o Islã abomina todos os tipos de opressão; repetia que é dever do muçulmano des-solidarizar-se de qualquer opressor, seja quem for: das famílias Saud e al-Khalifa, para começar; sunitas e xiitas não tem culpa dos crimes dessas pessoas, sejam sunitas, sejam xiitas. Os muçulmanos devem condenar os crimes, seja quem for o criminoso, disse em dezembro de 2011, e concluiu dizendo que todos os oprimidos devem unir-se contra os opressores.
Para resumir, Nimr al-Nimr foi empenhado defensor da causa palestina, e conclamava o governo saudita a mandar forças armadas contra Israel, em vez de agredir o Bahrein.
Alguns veículos falaram do caráter “provocador” dos discursos de Nimr al-Nimr, mas os comentários não passam de melindres de absurdos, pode-se dizer obscenos, que parecem não ver a violência massiva, inaudita, física, não ‘de oratória’, à qual os discursos de Nimr al-Nimr respondem. Num de seus últimos discursos, dia 22 junho de 2012, duas semanas antes de ser preso, Nimr al-Nimr evocou a morte do príncipe Nayef, ministro do Interior e herdeiro do trono. Disse que a única reação possível ao desaparecimento do assassino torturador de filhos de famílias ali presentes –inclusive da família do próprio Nimr al-Nimr –, era agradecer a Deus; só o “Anjo da morte” saberia o que fazer de déspotas como o príncipe Nayef.
Foi declaração que se pode considerar “proporcional”, para retomar o jargão de nossos políticos e jornalistas, e que não justifica, de modo algum, a acusação de que Nimr al-Nimr teria “provocado” gente perigosa, assassinos de sangue gelado. Ao contrário, naquelas condições de opressão, deve-se elogiar a sabedoria e a moderação do comentário, porque aí, mais uma vez, Nimr al-Nimr não apelou à violência e à sedição, como o acusaram de ter feito, e sempre foi defensor ardente da contestação pacífica.
Também o acusaram de ser agente do “expansionismo” persa – por mais que, desde o século 19 ninguém tenha visto qualquer movimento de agressão dos iranianos. De fato, Nimr al-Nimr foi crítico implacável do regime sírio, aliado estratégico de Teerã – sinal claro de que foi pensador independente, como ele próprio declarou-se tantas vezes.
A reação de Nimr al-Nimr àquelas acusações foi mostrar o que havia nelas de ridículo e contraditório, uma vez que a opressão de xiitas, inerente ao wahhabismo, começou muito antes da Revolução Islâmica Iraniana.
A perseguição de xiitas por wahhabistas existe desde o estabelecimento do primeiro estado saudita, depois da aliança de Muhammad Ibn Abd-al-Wahhab com a Casa de Saud, no século 18, e perdura até hoje, ampliada contra toda a população do reino, como a própria Anistia Internacional viu muito bem.
Quanto ao resto, insistia Nimr al-Nimr, não se recomenda ao regime saudita e aos países do Golfo, em cujos territórios há incontáveis bases militares dos EUA, e os quais o ocidente afoga em armas, que deem a impressão de receber ajuda do Irã.
Nimr al-Nimr foi portanto um autêntico opositor político com influência nacional, no sentido mais nobre da palavra. Por isso a Anistia Internacional denunciou com total clareza “um processo político iníquo”, com instrumentalização de questões anexas:
“As autoridades sauditas indicaram que as execuções visariam a combater o terrorismo e preservar a segurança. A execução de Nimr al-Nimr em particular parece indicar contudo que recorrem também à pena de morte, como se fosse item da guerra antiterrorismo, para acertar ‘contas’ e esmagar a dissidência.”
Por que o regime saudita teria decidido executar Nimr al-Nimr nesse específico contexto?Certamente por despeito ante o fracasso da campanha dos sauditas no Iêmen – fracasso espetacular, depois de nove meses de guerra sem mercê na qual uma coalizão dos mais ricos países árabes – mantidos pelo ocidente – atacou selvagemente o mais pobre de todos os países árabes. Guerra na qual a Arábia Saudita sequer consegue defender o próprio território contra golpes e incursões regulares dos iemenitas que continuam a dizimar as forças sauditas.
Assim também, os investimentos e esperanças da Arábia Saudita no Iraque e sobretudo na Síria viraram fumaça, depois da intervenção russa. O Daech – Saud é o pai, o wahhabismo, a mãe – já bate em retirada em todos os fronts. Essas despesas colossais, conjugadas à queda do preço do petróleo, pesam sobre a economia saudita e impõem reformas. Foi quando os dirigentes sauditas sanguinários ficaram reduzidos a macabros atos de vingança, como a execução de Nimr al-Nimr, e a mais e mais destruição e crimes contra a população civil no Iêmen.
No Iêmen, Riad anunciou o fim do cessar-fogo, contando com essa ‘tática’ assassina para inspirar terror pânico, terrorista, a todos, e calar qualquer reivindicação.
Assim sendo, o que resta da ‘questão sectária’ e da “rivalidade” entre alguma Arábia Saudita “sunita” (mais rigorosamente, wahhabista) e algum Irã xiita?
É evidente que a Arábia Saudita nunca parou de fazer tudo que estivesse ao alcance de seus petrodólares, para impor coloração sectária a todos os conflitos. Depois da Revolução Islâmica do Irã em 1979, os sauditas já gastaram bilhões de dólares para inundar o mundo muçulmano de diatribes anti-xiitas, caluniando sem vergonha os adeptos dessa escola, e apresentando o Irã como principal inimigo do mundo árabe-muçulmano (acima, até, dos EUA ou de Israel).
Desse mesmo modo, a propaganda do Daech recruta ‘jihadistas’ para combater no Iraque e na Síria, persuadindo analfabetos condicionados por décadas de propaganda wahhabista, de que lá estarão para defender uma pureza original do Islã contra “inovadores xiitas e alauítas” que ali morrerão pela espada. Esse discurso, galvanizado por determinação de Washington, Londres e Paris no Oriente Médio, além de recursos e meios ilimitados, conseguiu mobilizar dezenas de milhares de fanáticos no início da crise síria. Mas já há muito tempo perdeu o impacto, no contato com a realidade em campo, sobretudo depois que crimes indiscriminados de terroristas takfiris foram revelados à luz do dia. A grande maioria das vítimas dos terroristas sauditas são, isso sim, sunitas.
Desde o início da crise em 2011, especialmente na Síria, onde a maioria do exército do estado sírio é sunita, todas as etnias, religiões e seitas combateram lado a lado contra Al-Qaeda, Daech e outros – assim como coexistiram pacificamente durante séculos.
O mais recente ato bárbaro da Arábia Saudita, ao executar Nimr al-Nimr, bem pode ser, isso sim, ato de provocação para reavivar tensões sectárias, agora que romperam relações diplomáticas com o Irã, logo depois de a embaixada saudita em Teerã ter sido atacada.
E o que teria qualquer religião a ver com tudo isso? Vale para essas guerras, como sempre valeu para todas as guerras precedentes: a religião nunca é o verdadeiro motivo; nunca passa de simples pretexto para ocultar e encobrir projetos puramente políticos, disputas por influência e poder, confrontos entre, de um lado, aspirações a mais e mais independência e, de outro, vontades de hegemonia e dominação, em escalas nacional, regional e mundial.
Para convencer-se de que a “rivalidade” entre o Irã e a Arábia Saudita é política, não religiosa de modo algum, basta lembrar que, se o Irã é República Islâmica a partir de 1979, é povo e cultura islamistas desde o século 17.
Quando o Irã, governado pelo Xá Muhammad Redha Pahlavi, era o principal aliado dos EUA e o “guardião do Oriente Médio”, por acaso não era aliado e, pode-se dizer, patrão dos Sauds?
O atual rei da Arábia Saudita, Salmane b. Abd-al-Aziz al-Saud, por acaso não acolheu ele mesmo o Xá, cerimonialmente, com uma Dança dos Sabres no início dos anos 1970?
O Xá por acaso não era persa e, pelo menos oficialmente, suposto xiita? A Arábia Saudita por acaso já não era, então, wahhabista? É claro que sim.
Pois nenhuma dessas diferenças religiosas jamais causou problema algum, porque o essencial estava preservado em todos esses casos, a saber, os laços de vassalagem deles todos, ajoelhados ante o altar dos EUA e da política imperial e neocolonialista dos EUA para o Oriente Médio – da qual Teerã e Riad, irmanadas com Telavive, eram agentes fiéis.
É portanto absurdo pretender que haveria alguma questão sectária na base da rivalidade entre Arábia Saudita e Irã que não tenha surgido precisamente em 1979.
Em 1979, a Revolução do Imã Khomeini transformou o Irã em potência independente, inimiga implacável dos EUA – como se vira acontecer em Cuba 20 anos antes, em 1959. Nos dois casos, Washington temia que se desencadeasse um “efeito dominó”, que derrubaria os governos ‘clientes’, como aconteceu na América Latina e está agora em curso no Oriente Médio.
A partir de então, sim, passou a ser indispensável combater contra o Irã, para impedir que se convertesse em potência regional adversária do imperialismo e do colonialismo EUA-sionista. Para justificar a agressão ao Irã, a Arábia Saudita inventou, como pretexto, uma luta suposta histórica contra o xiismo; e para justificar a agressão ao Iraque de Saddam Hussein, inventaram uma luta contra “os persas” (porque no Iraque a população é majoritariamente xiita e o pretexto sectário não ‘funcionaria’). E os EUA inventaram, para justificar todas as agressões ao Irã e na região, a luta contra o “fundamentalismo” e/ou a “proliferação nuclear”.
Nimr al-Nimr sempre denunciou vivamente essa impostura em todas as suas falas e discursos, dirigindo-se aos sauditas e condenando suas políticas sediciosas, tanto no próprio país como em toda a região:
“Não vemos nenhum problema entre sunitas ou xiitas, entre os diferentes países sunitas e o Irã. O único problema é o governo de vocês [falando aos governantes sauditas]. Vocês zombam do mundo [ao instrumentalizarem essa falsa rivalidade sectária]. Não há problema algum entre sunitas e xiitas. São mentiras das quais vocês se servem para burlar os seus seguidores ignorantes e tolos e os brutos que se dizem ‘salafistas': ‘salafistas’ de Nayef, ‘salafistas’ dos Saud, que não dão importância alguma à religião alguma. O ‘salafismo’ deles baseia-se em assassinatos, violações da honra, traições e colaboracionismo com os EUA. Esse é o ‘salafismo’ deles. Eis os sauditas.”
Pela fé inabalável na luta não violenta e na força invencível de uma palavra de verdade contra a mais retrógrada, a mais impiedosa das tiranias, Nimr al-Nimr encarnava exemplarmente a aspiração dos povos árabes à democracia e à dignidade.
Ante os mornos protestos no ocidente – praticamente só tímidas condenações de princípio contra a pena de morte – todos os defensores autênticos do direito de autodeterminação dos povos e da liberdade de expressão podem vestir luto e homenagear Nimr al-Nimr como mártir.
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