Num longo artigo no Washington Post em que lamenta o resultado do referendo pró Brexite o declara "vitória de Putin", o ex-embaixador dos EUA na Rússia Michael McFaul deixa escapar um parágrafo fascinante, muito revelador do universo que há por trás do espelho do pensamento neoconservador:
"Ele (Putin) deteve a expansão da OTAN ao invadir a Geórgia em 2008 e tornou mais lenta a expansão da União Europeia (UE) ao invadir a Ucrânia em 2014. Aumentou a hegemonia econômica da Rússia em grandes áreas da extinta União Soviética, ao criar a União Econômica Eurasiana (UEE). Resultado de sua intervenção militar na Síria, Putin está expandindo a presença militar da Rússia no Oriente Médio, enquanto Europa e EUA se recolhem."
No mundo em que vive McFaul, tudo isso é definido axiomaticamente como péssimo. Mas o quê, realmente, haveria ali de ruim? Tomemos uma a uma as proposições acima.
Deter a expansão da OTAN e tornar mais lenta a da UE
Nem Putin nem Rússia invadiram a Geórgia em 2008. Como já se sabe, conclusivamente estabelecido em relatório da UE, o que aconteceu em 2008 foi que a Geórgia atacou a Ossetia Sul, e a Rússia rechaçou o ataque georgiano.
A Rússia tampouco invadiu a Ucrânia em 2014. O que aconteceu em 2014 foi que, depois de golpe de Estado violento e inconstitucional em Kiev, que derrubou o presidente democraticamente eleito que governava o país, a Crimeia votou a favor de separar-se da Ucrânia e integrar-se à Federação Russa; e as regiões do leste da Ucrânia – que haviam votado massivamente a favor do presidente derrubado – protestaram contra o golpe que o derrubou e passaram a exigir mais autonomia. O novo governo golpista que se instalou em Kiev respondeu, lançando ataque militar contra os que protestavam nas regiões leste do país, o que levou à guerra que lá acontece até hoje. O fato de que o conflito na Ucrânia é guerra civil é explicitamente reconhecido no Acordo Minsk II – negociado com a intermediação de alemães e franceses e que fixa um mapa do caminho para a solução política do conflito – e o qual, por si só, é documento internacional legal aprovado e apoiado como tal pelos EUA e em votação do Conselho de Segurança da ONU.
Deixando-se de lado esses pontos fatuais, o que haveria de errado em a Rússia opor-se à expansão da OTAN e da UE rumo às fronteiras russas, e por que seria 'automaticamente' correto que OTAN e UE obrassem para expandirem-se naquela direção? Por que seria péssimo deter a expansão da primeira e tornar mais lenta a da segunda?
McFaul não responde, sequer se propõe, essas perguntas. Para ele, o simples fato de os EUA desejarem que essas organizações expandam-se diretamente para cima das fronteiras russas bastaria, só esse fato, para tornar benéfica a expansão, e maligna a oposição russa. Como o comentário mostra obviamente demais, no mundo de McFaul a Rússia simplesmente não teria qualquer direito a voto ou opinião nessas questões. Muito menos teria direito a agir, ainda que sejam questões vitais para a segurança e os interesses nacionais dos russos.
A União Econômica Eurasiana (UEE)
Diferente da UE, que se expandiu depois de guerras na Iugoslávia e que McFaul quer expandir para a Ucrânia depois de violento golpe de Estado em Kiev, a União Econômica Eurasiana foi criada e estabelecida por vias absolutamente pacíficas.
Por que seria errado e ruim que a Rússia promova pacificamente a UEE, e correto e bom que os EUA promovam – muitas vezes com violência – a UE?
Nesse artigo, McFaul, essencialmente, acusa a Rússia de trabalhar para subverter e desintegrar a UE, por exemplo, desejando o Brexit. Mas... e não é precisamente o que ele prega que EUA e UE façam contra a UEE? Por que a Rússia fazê-lo à UE seria errado e ruim, mas EUA e UE fazerem a mesma coisa contra a UEE seria correto e bom?
Fato é que McFaul está completamente errado. Os russos não estão tentando subverter ou desintegrar a UE. As "provas" de que estariam não vão além do fato de o partido de Marine Le Pen na França teria uma vez tomado um empréstimo de um banco comercial russo. Os russos absolutamente não trabalharam a favor do resultado "Sair" no referendo britânico doBrexit, e Putin não elogiou o resultado, quando aconteceu. Putin disse com perfeita clareza, no discurso ao Fórum Econômico Internacional de S.Petersburgo 2016, que longe de quererem destruir a UE, os russos querem que a UE torne-se parceira no seu projeto Eurásia Expandida [ing. Greater Eurasia].
Ao contrário disso, os EUA abertamente se comprometeram com fazer de tudo para parar ou atrasar o desenvolvimento da UEE. O golpe em Kiev e a guerra na Ucrânia são, no mínimo em parte, efeito disso.
Expandir a presença da Rússia no Oriente Médio e a guerra na Síria
Os EUA tentam há décadas, expandir sua presença no Oriente Médio. Têm bases militares na Arábia Saudita, Iraque, Bahrain e Turquia. São aliados de Israel e da Arábia Saudita. Os EUA fizeram guerras de agressão que derrubaram os governos do Iraque e da Líbia. Os EUA, durante anos, apoiaram a insurgência que visava a derrubar o governo da Síria. Os EUA prenderam o Irã em virtual estado de sítio.
Por que seria correto e bom que os EUA expandam sua presença no Oriente Médio sempre por guerras e violência, mas seria errado e ruim que a Rússia fizesse o mesmo?
Fato é que, outra vez, McFaul distorce a política russa.
Para começar, é discutível que a influência dos russos esteja realmente em expansão no Oriente Médio. A Rússia já tinha presença na Síria antes do início da guerra; e, embora os laços entre Rússia e Irã estejam em processo de fortalecimento, o Irã absolutamente não é estado vassalo da Rússia, ou satélite russo, nem se converterá nisso. Quanto à intervenção russa na Síria – como os russos várias vezes disseram e repetiram, e diferente nisso das muitas intervenções norte-americanas – não apenas é intervenção legal como, além disso, é intervenção em apoio a governo existente e internacionalmente reconhecido. Nesse sentido, é intervenção que visa a preservar a ordem e a estabilidade na região, não a derrubar ou a debilitar governos internacionalmente reconhecidos. Além de tudo isso – e também diferente dos EUA, que jamais discute qualquer questão com os russos, se não quando obrigados a discutir –, os russos muito se esforçaram e muito se dedicaram a conversar com os EUA sobre a Síria, e tentaram trabalhar com os EUA para encontrar solução diplomática para a crise na Síria.
O artigo de McFaul reúne tudo que há de errado e perigoso na política dos EUA.
É ostensivamente claro, na visão de mundo de McFaul e de outros neoconservadores, que a Rússia – e todos os demais países do mundo – não têm direito a opinião própria e, com certeza, tampouco têm direito a qualquer política externa independente. O único curso "bom" para o mundo é aceitar qualquer demanda que os EUA lhes apresentem. Quando agem de outro modo, cuidando dos próprios interesses, cometem erros e praticam "o mal" e tornam-se alvos a serem vilipendiados e atacados.
É demanda descabida, impossível, que o mundo nunca mais vira numa Super Potência, desde a Queda do Império Romano. Nenhum país forte e independente de modo algum aceitará essa demanda. E ao insistir em 'exigir' dos russos esse tipo de servilismo, os EUA estão empurrando o mundo em direção à guerra.
Alexander Mercouris, The Duran
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
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