Susan Whitfield,*South China Morning Post [Dica de Pepe
Escobar, no Face]
Entreouvido na Vila Mandinga
Enquanto EUA e Brasil, já convertidos em latrina do mundo, afogam-se em lama e merda e miséria e ARROCHO neoliberais e ladram em ‘debates’ pela Rede Globo, a caravana do ‘oriente’ anti-ARROCHO só avança... Venceremos.
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Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga
Ao promover sua “Iniciativa Cinturão e Estrada” – ambicioso plano para abrir novos mercados para a China, pela construção de infraestrutura comercial e logística da Ásia para Europa e Ásia – Pequim invoca e recria paralelos com a fabulosa Rota da Seda, que operou entre os mesmos três continentes, praticamente do ano 200 a.C., até 1400.
Mas, como objeto de estudo histórico, a Iniciativa Cinturão e Estrada é completamente diferente da Rota da Seda. De fato, nunca houve um trilha chamada Rota da Seda, que é o nome pelo qual, desde o final do século 20, muitos se referem, de vários modos, todos igualmente imprecisos, ao comércio de longa distância e às interações entre África e Eurásia.
A Rota da Seda jamais foi algum tipo de rede formal com comando central, como há quem pense que seria a Iniciativa Cinturão e Estrada. Houve várias redes comerciais, sempre em mutação, algumas para a seda, em fio e tecida, outras para outros produtos. Algumas começaram na China ou em Roma, outras na Ásia Central, Índia ou África, e em muitos outros locais. As jornadas faziam-se por mar, rio ou por terra, ou pelas três vias.
Às vezes, um ou outro governo esteve diretamente envolvido no comércio, às vezes só mercadores, outras vezes, ambos.
Apesar dessas ambiguidades, a Rota da Seda não pode ser descartada como conceito. “Rota da Seda” acabou por adquirir um tom de familiaridade, que ganhou valor real, porque deu grande proeminência e acessibilidade a regiões com as quais só raramente a historiografia se ocupou. Resultado disso, a popularidade sempre crescente do termo estimulou o surgimento de um ponto de vista histórico mais global.
No centro da ideia da Rota da Seda está a interação transfronteiras, sejam fronteiras temporais, geográficas, culturais, políticas ou imaginárias. As interações e o efeito que tiveram sobre indivíduos e suas culturas são o grande legado real da Rota da Seda, especialmente depois que a vasta maioria dos objetos da Rota da Seda – itens corriqueiros ou do mais alto luxo, comerciados ou não – já desapareceram há muito tempo.
IMAGEM Jarro de prata dourada, do século 5º ou 6º, encontrado na tumba do general Li Xian (d. 569) e esposa, perto de Guyuan, Região Autônoma de Ningxia Hui, China. Produzido provavelmente da região de Báctria, hoje norte do Afeganistão. Da Coleção do Museu Municipal de Guyuan). [Melhor imagem.]
Nas viagens, consumiam-se alimentos, vinho e medicamentos. Escravos, elefantes, mercadores e cavalos morriam. Tecidos, madeira e marfim apodreciam. Recipientes de vidro e argila partiam-se. Só em casos raros sobreviviam objetos inteiros, por amor ou por acaso, como em tesouros escondidos, de metal ou vidro; ou em tumbas, quando os objetos eram suficientemente valorizados para serem enterrados com o cadáver.
Mesmo assim, a história de um único objeto encapsula, vez ou outra, várias ricas interações da Rota da Seda. É o caso de um jarro de prata dourada, encontrado no túmulo de um general do século 6º e esposa, em região que é hoje o norte da China.
O jarro foi fabricado provavelmente no coração da Rota da Seda, em Bactria (hoje norte do Afeganistão), possivelmente quando a região estava sob domínio de povos que haviam migrado das fronteiras e da estepe da China, os heftalitas, “hunos brancos”.
O jarro, com 37 cm de altura, mostra cena diversa. É trabalhado com técnica de escultura em metal com martelo, dos persas sassânidas, e figuras da literatura grega, do extremo ocidental, e influências da Índia, ao sul. A biografia desse jarro, assim, cobre toda a superfície geográfica, de longo e de largo, da Rota da Seda.
Em certo sentido, o jarro cobre 3 mil anos de história. As cenas que lá se registram [a história de Paris e de Helena de Troia] datam da Grécia clássica, 1.500 anos antes de o jarro ser fundido. Depois de enterrado, o jarro viajou outros 15 séculos para leste de onde nasceu.
Tudo, nesse jarro, fala de movimento e interação na Rota da Seda. A forma e o material de que é feito, por exemplo: encontram-se jarros de metal desde Roma, pela Pérsia sassânida, até a Ásia Central, e na China o mesmo formato é copiado em cerâmica. Cada local emprestou características suas à forma básica do jarro: a alça retangular dos sassânidas (último império persa, antes da ascensão do Islã, no século 7º) ou a cabeça de camelo, nessa peça bactriana. Mas talvez o mais fascinante sejam as cenas da Guerra de Troia esculpidas à volta do corpo do jarro.
Narrativas da Guerra de Troia muito provavelmente viajaram para o oriente muito antes da Rota da Seca, levada pelas pessoas, em objetos e possivelmente também em textos escritos. No século 4º a.C., o mundo grego e sua influência expandiram-se dramaticamente, com as campanhas de Alexandre o Grande (que viveu de 356 a.C. até 323 a.C.).
IMAGEM: Pintura do século 17, do estúdio do pintor flamengo Peter Paul Rubens, do casamento de Alexandre, o Grande, com Roxane. Foto: Alamy
Alexandre chegou a Bactria em 329 a.C., e conquistou a região nos dois anos seguintes. Em 327 a.C., na vitória, tomou uma noiva, Roxane, que os historiadores sempre apresentam como bactriana. Embora o reinado de Alexandre não tenha durado muito (morreu em Babilônia quatro anos depois), a introdução da língua grega, do modo de governar, da arquitetura, arte e cultura para o leste, na Ásia Central, teria forte influência, levando ao que alguns chamam de “helenização” daquela região.
E essa influência pode ter avançado ainda mais para leste: há quem atribua a ela o surgimento de estatuária realista, com figuras em tamanho natural, na China, belo exemplo da qual são os Guerreiros de Terracota guardados na tumba de Shihuangdi, primeiro imperador de uma China unificada (259 a.C. até 210 a.C.) [Sem legendas nem som, as imagens de National Geographic são sensacionais (NTs)]
Os artesãos da Bactria heftalita que produziram o jarro estavam separados da história e de onde ela nasceu por um milênio e 5 mil quilômetros. Ainda que os episódios mostrados no jarro possam ser rastreados no passado até a mitologia grega, bem poderiam já estar incorporados, àquela altura, a história mais local, e ter sido re-contada pelos artesãos e proprietários sob outra forma, que talvez nem reconheceríamos.
O jarro provavelmente não ficou por mais de umas poucas décadas, no máximo, em Bactria, depois de ter sido levado para o oriente, até Guyuan, hoje Região Autônoma de Ningxia da China. O novo proprietário, (502-569 d.C.), era filho de imigrantes. Segundo a biografia gravada em pedra, dentro da tumba, seus ancestrais era das estepes do norte, chegados às regiões da fronteira algumas gerações antes, quando adotaram sobrenome chinês.
Como comandante militar de postos de fronteira, Li deve ter viajado muito, e muitas de suas viagem certamente o levaram pelas trilhas comerciais da Rota da Seda, assim como à capital, para prestar contas e receber ordens. Em 525 d.C., um emissário heftalita passou por Guyuan a caminho para Luoyang. Levava com ele um leão, presente diplomático que recebera. Não era coisa rara: os tocarianos costumavam presentear leões à corte chinesa, nos séculos 7º e 8º, e um leão foi enviado de Samarcanda, em 635 d.C., e recebeu, em sua homenagem, um rapsódia encomendada pelo imperador.
IMAGEM: Imagem de Shihuangdi, 1º imperador de uma China unificada. Foto Alamy.
Em 525 d.C., Li seria homem jovem, mas, dado o status que tinha, sua família provavelmente hospedou o enviado, e pode ter recebido o jarro, como presente.
Como Li viu e usou o jarro? Seria visto como peça exótica, só mostrada em banquetes formais, contendo o vinho local para servir aos convidados, e para ostentar status e cosmopolitismo? Ou só serviu para ocasiões menos formais? Ou não serviu para coisa alguma?
Pelo que se sabe, Li pode ter comprado o jarro pouco antes de morrer e nunca o usou.
São problemas arqueológicos e históricos emocionantes, mas só se pode especular. O mesmo vale para o uso que Li teria dado ao jarro. O que poderia saber sobre a história da Guerra de Troia, ainda que estivesse já assimilada à mitologia local? Ou, sabe-se lá, entendia-se que o jarro contasse outra história, de personagens locais? Ou que nem contasse história alguma, só trabalho artesanal atraente ou exótico?
Nem todas as pessoas fazem perguntas sobre o mundo que os cerca e os objetos que encontram. De fato, é possível que o jarro fosse objeto amado não do general, mas de sua esposa, dado que os dois foram enterrados lado a lado. Mas não há dúvidas de que esse jarro e sua jornada refletem tempos de movimento e encontros culturais – a história da Rota da Seda –, que deixaram marcada a sociedade pré-moderna em toda a Afro-Eurásia, e ressoam até hoje.*******
* Susan Whitfield foi curadora da coleção de manuscritos da Ásia Central da Biblioteca Britânica, por 25 anos. Seu livro mais recente, lançado esse ano, é Silk, Slaves and Stupas: Material Culture of the Silk Road [Seda, Escravos e Stupas: Cultura Material da Rota da Seda]. Esse artigo foi produzido por Zocalo Public Square (zocalopublicsquare.org) [Aqui traduzido para finalidades acadêmicas, sem valor comercial (NTs)].
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