Federico Pieraccini, Strategic Culture Foundation
Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga
Com o fim do momento unipolar, quando Washington dominou as relações internacionais, os países eurasianos mais ricos e mais fortes começam a se auto-organizar em estruturas de aliança e acordos, que visam a facilitar o comércio, o desenvolvimento e a cooperação.
No auge do momento unipolar dos EUA, Bill Clinton liderava um país que estava em plena recuperação econômica, e os estrategistas do Pentágono traçavam planos para modelar o mundo à sua própria imagem e semelhança. O objetivo não declarado sempre foi a mudança de regime em todos os países com sistemas políticos não aprovados, o que promoveria a proliferação de “democracia” à moda EUA por todos os quadrantes do mundo. Claro que países da Eurásia como Rússia, Índia, China e Irã apareciam no topo da lista, ao lado de países do Oriente Médio e Norte da África.
O bombardeio e a destruição da Iugoslávia foi o passo final no assalto contra a Federação Russa, depois da dissolução do Pacto de Varsóvia. Yeltsin representou os meios pelos quais a alta finança ocidental decidiu roubar toda a riqueza da Rússia, privatizando empresas e saqueando recursos estratégicos.
A China, por outro lado, viu um renascimento como resultado de empresas norte-americanos e europeias terem realocados suas unidades produtivas, buscando as vantagens oferecidas pela mão de obra barata. A Índia, historicamente próxima da URSS, e o Irã, adversário histórico de Washington, lutavam para conseguir algum novo equilíbrio num mundo dominado por Washington.
Teerã estava claramente num conflito aberto com os EUA, desde a revolução islâmica de 1979 que liberou o país da submissão ao ocidente sob o Xá Mohammad Reza Pahlavi. A Índia compreendeu a nova realidade, lançando as fundações para íntima cooperação com Washington. Antes, o uso do jihadismo no Afeganistão, mediante a coordenação entre Paquistão, Arábia Saudita e EUA, havia minado gravemente as relações entre Índia e os EUA, lembrando que Nova Delhi foi importante aliado de Moscou durante a Guerra Fria.
Depois da queda do Muro de Berlin e o início da era unipolar, Índia, Rússia, China e Irã iniciaram as respectivas trilhas rumo ao renascimento histórico, embora partindo de posições muito diferentes e para seguir rotas diferentes. A Índia compreendeu que Washington tinha a seu dispor imenso poder econômico e militar. Apesar de já haver o abraço precoce entre Clinton e o primeiro-ministro Atal Bihari Vajpayee, as relações entre New Delhi e Washington alcançaram picos não previstos durante a era Bush. Uma série de fatores ajudaram a firmar os laços. Houve, primeiro, a realidade do forte crescimento econômico da Índia. Em segundo lugar, a Índia oferecia a oportunidade para contrabalançar e conter a China, cenário geopolítico clássico.
Durante esse delicado período unipolar, houve dois eventos altamente significativos para Rússia e China, que marcaram o início do fim dos planos de Washington para dominar o planeta. Primeiro, dia 31/12/1999, Putin tornou-se presidente da Federação Russa. Segundo, Pequim foi aceita na Organização Mundial do Comércio (OMC).
Hoje o poder econômico chinês já decolou, graças às empresas industriais ocidentais que realocaram para a China suas unidades produtivas, com o que conseguiram triplicar dividendos e cortar os custos em mais da metade. Foi modelo vitorioso para o capitalista, e de derrota para o trabalhador do chão de fábrica ocidental – como se vê hoje, claramente, vinte anos depois. O pensamento estratégico do recém eleito Putin foi geopoliticamente visionário e levava, na base, uma completa modernização da doutrina militar da Rússia.
China e Rússia procuraram ambas, inicialmente, seguir a via da Índia, de cooperação e desenvolvimento com Washington.
Moscou tentou diálogo franco com Washington e OTAN, mas a decisão dos EUA, em 2002, de retirar-se do Tratado dos Mísseis Antimísseis Balísticos [ing. Anti-Ballistic Missile Treaty, ing. ABM Treaty], marcou o início do fim dos sonhos ocidentais de integrar na OTAN a Federação Russa.
Para Pequim, a trilha foi ainda mais desastrosa, graças a um círculo vicioso pelo qual o ocidente mudou suas unidades produtivas para a China pensando só em aumentar lucros, os quais foram na sequência investidos no mercado de ações dos EUA, multiplicando ainda muito mais os ganhos. Foi como se os EUA estivessem num grande ‘projeto’ de enriquecimento rápido, até que, 20 anos depois, toda a classe média e as classes trabalhadoras viram-se reduzidas à mais completa penúria.
Nesse período, depois de 11/9/2001, o foco de Washington mudou, afastando-se rapidamente do projeto de confrontar potência rivais, para abraçar a “luta” contra o terrorismo. Foi via esperta para ocupar taticamente importantes países em regiões estrategicamente importantes do país. Na Eurásia, as forças dos EUA implantaram-se no Afeganistão, sob o pretexto de combater al-Qaeda e os Talibã. No Oriente Médio, ocupam o Iraque pela segunda vez e converteram o país em base operacional a partir da qual desestabilizar o resto da região nas décadas seguintes.
Enquanto Índia e China buscavam principalmente o crescimento pacífico como meio para empoderar a região asiática, Rússia e Irã rapidamente compreenderam que os olhos de Washington em pouco tempo cairiam sobre eles. Moscou ainda continuou a ser vista como inimigo mortal, pelos ‘guerreiros’ conservadores da Guerra Fria; e a revolução islamista de 1979 não foi nem esquecida nem perdoada. Na década que se seguiu ao 11/9, foram lançados os alicerces para a criação de uma ordem multipolar, que gerou, no processo, o vasto caos transicional em que vivemos hoje.
Índia e China mantiveram-se na trilha para se tornarem gigantes econômicos, ainda que haja uma rivalidade latente mas constante; enquanto Irã e Rússia continuaram em sua trilha de rejuvenescimento das forças militares para garantir contenção suficiente para desencorajar qualquer tipo de ataque por Israel e por EUA, respectivamente.
O ponto de ruptura desse delicado equilíbrio geopolítico aconteceu sob a forma da “Primavera Árabe” de 2011. Enquanto Índia e China continuaram na trilha do crescimento econômico; e Rússia e Irã tornaram-se potência regionais difíceis de descartar, os EUA continuaram no mesmo surto unipolar, bombardeando Somália, Afeganistão e Iraque, depois de terem bombardeado a Iugoslávia; e o Pentágono continuou dedicado a conceber operações clandestinas no Oriente Médio, com a ajuda de sauditas, israelenses, britânicos e franceses, que ajudaram a armar jihadistas locais para disseminar o inferno. Primeiro a Tunísia, depois o Egito, finalmente a Líbia. Mais mortes, mais bombas, mais caos.
Os sinais de alerta foram visíveis para todas as potências regionais, de China e Rússia a Índia e Irã. Ainda que as sinergias não estivessem ativadas, ficou claro para todos o que tinha de ser feito. A desestabilização concebida e executada pelos EUA em todo o mundo tinha de ser contida, com foco dedicado a Eurásia, Oriente Médio e Norte da África.
Devagar, e não sem problemas, esses quatro países iniciaram uma cooperação militar, econômica, política e diplomática que, quase uma década depois, permitiu pôr fim ao momento unipolar dos EUA e a criação de uma realidade multipolar, com vários centros de poder.
A primeira confirmação dessa nova fase em relações internacionais, favorecida por laços históricos, foi a crescente cooperação multifacetada entre Índia e Rússia. Outro fator foi China e Rússia terem sido arrastados para o Oriente Médio e Norte da África, como resultado das ações do governo Obama no Oriente Médio, com suas ‘primaveras árabes’, bombardeamento da Líbia e desestabilização da Síria. Temiam que o caos prolongado na região viria eventualmente a ter efeito negativo sobre as respectivas economias e estabilidade social.
A gota d’água foi o golpe de estado na Ucrânia, além da escalada nas provocações no Mar do Sul da China, depois de os EUA inventarem seu chamado “Pivô para a Ásia”. Rússia e China foram assim forçados para uma situação que os dois países consideraram impossível ao longo dos 40 anos prévios: darem-se as mãos para mudar a ordem mundial, removendo Washington do trono de superpotência.
De início, houve interessantes acordos econômicos que deixaram boquiabertos os estrategistas ocidentais. Em seguida vieram as sinergias militares; e por fim as sinergias diplomáticas, expressas em votos coordenados no Conselho de Segurança da ONU. De 2014 em diante, Rússia e China assinaram importantes acordos que lançaram os fundamentos de um duradouro duopólio eurasiano.
O legado de Obama não chegou ao fim, nem com mais de 100 mil jihadistas lançados contra o Oriente Médio, financiados por EUA e aliados. Moscou foi arrastada a intervir na Síria para proteger as próprias fronteiras e impedir o eventual avanço dos jihadistas sobre o Cáucaso, ‘baixo ventre’ macio histórico da Rússia. Esse movimento foi saudado pelo Pentágono como um novo “Vietnã” para a Rússia. Mas todos esses cálculos revelaram-se completamente errados.
Moscou, além de salvar a Síria e frustrar os planos de Washington e seus confederados, reforçou muito suas relações com o Irã (que nem sempre, antes, foi relacionamento simples, especialmente durante o período soviético) – que foram elevados ao mais alto nível de cooperação regional.
O legado de Obama inadvertidamente criou um triângulo estratégico que reuniu Irã, China e Rússia e levou a desenvolver projetos e programas de alto nível para a região e para além dela. É completo desastre para a política exterior dos EUA, e marca o fim inquestionável de seu o sonho unipolar.
Saltando alguns anos adiante, encontramos Trump no timão dos EUA, que só faz repetir um mantra: “America First” [EUA em primeiro lugar]. Do ponto de vista da Índia, esse movimento agravou ainda mais as relações entre os dois países, com sanções e ‘deveres’ impostos à Índia por uma decisão do ocidente, em primeiro lugar, de mudar os empregos para aquele país de baixos salários, exclusivamente para engordar os bônus pagos aos principais executivos de empresas euro-norte-americanos.
Modi, da Índia foi forçado a aprofundar significativamente seus laços com o Irã, para garantir a própria autonomia estratégica em termos de energia, sem esquecer a proximidade geográfica dos dois países. Nesse contexto, a vitória de Rússia e Irã contra o terrorismo no Oriente Médio pacifica a região e estabiliza Síria, Egito, Iraque e Líbia, permitindo que se desenvolvam novos grandes projetos como as Novas Rotas da Seda, investimento ao qual Pequim dá considerável importância.
Seria possível seguir esse argumento, detalhando como até China e Índia superaram as desconfianças históricas, bem conscientes de que se deixar dividir só beneficia os que vivem do outro lado do oceano, e não, com certeza dois países que vivem período de grande crescimento econômico, com fronteira comum de milhares de quilômetros. As reuniões de Modi e Xi Jinping, de Putin e Xi Jinping e de Putin e Modi mostram que bem claramente a intenção desses três líderes é assegurar futuro pacífico e próspero para os respectivos cidadãos, e isso não pode ser separado de uma união firme, com abandono de disputas e diferenças secundárias.
As sinergias em anos recentes mudaram, de arenas militares e diplomáticas, para a arena econômica. Isso, graças a Donald Trump e a sua política agressiva de usar o dólar como um porrete com o qual atingir oponentes políticos.
Um último passo que esses países tem de dar é a desdolarização, que tem papel importante no modo como os EUA consegue exercer influência econômica. Ainda que o EUA-dólar venha a permanecer como moeda central por muitos anos, o processo de desdolarização é irreversível.
Nesse momento, o Irã tem função vital no modo como Índia, Rússia e China podem responder assimetricamente aos EUA. A Rússia usa seu poder militar na Síria; a China busca integração econômica nas Novas Rotas da Seda, e a Índia já contorna o dólar, ao vender petróleo em troca de outros produtos ou outras moedas.
Índia, China e Rússia usam o Oriente Médio como degrau para fazer avançar a integração militar, econômica e de energia, para esvaziar planos dos neoconservadores na região. Com isso enviam um sinal para Israel e Arábia Saudita. Por outro lado, conflitos na Síria, Iraque e Afeganistão são ocasião para movimentos de pacificação, fazendo avançar a integração de dúzias de países, incorporando-os num projeto maior que inclui Eurásia, Oriente Médio e Norte da África, em vez de EUA e seus estados-clientes.
Rapidamente surgirá um ponto de ruptura, talvez não militar (dado que a doutrina MAD [Mutual Assured Destruction, Máxima Destruição Garantida permanece ativa), mas econômico. Claro, a fagulha pode vir de se mudar a moeda usada na compra e venda do petróleo, a saber, o EUA-dólar. É processo que ainda exige tempo, mas é condição indispensável para que o Irã torne-se potência com hegemonia regional. A China está em posição de confronto cada dia mais claro com Washington; a Rússia é cada dia mais influente na OPEP; e a Índia pode finalmente decidir abraçar a revolução eurasiana, formando um quadrado estratégico impenetrável contra Washington, que mudará o equilíbrio global a favor do Oriente, depois de mais de 500 anos de dominação pelo Ocidente.
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