Sir John Sawyers |
No início dessa semana (13-20/2/2015), o chefe recentemente aposentado do Serviço Secreto da Inteligência Britânica, Sir John Sawyers, disse:
(…) mas a crise na Ucrânia já não é crise só sobre a Ucrânia. Agora é crise muito maior, muito mais perigosa, entre Rússia e os países ocidentais, sobre valores e ordem na Europa.
Alertou que os países ocidentais têm de “encarar” Moscou, mas
(...) uma vez que Mr. Putin vê a questão em termos da própria segurança da Rússia, ele estará preparado para ir mais longe que nós.
Não se pode adivinhar o que, exatamente, o Sir subentende nesse confronto de valores: possivelmente, só quis destacar o meme já conhecido, segundo o qual a secessão voluntária da Crimeia, que votou a favor de separar-se da Ucrânia, equivaleria a pôr em risco toda a “ordem” europeia (muitos interpretam assim, embora, para isso, seja preciso fazer-se de cego e não ver o que aconteceu no que foi um dia a Iugoslávia).
Ou, possivelmente, SirJohn falava de algo mais profundo: que Moscou estaria realmente desafiando o Ocidente, ao reclamar prerrogativas para a Rússia contra a ordem financeira e comercial global e o respectivo modelo de governança democrática-consumerista liberal/neoliberal apresentado como imperativo universal; e a respectiva reengenharia da ordem internacional, distanciada das normas sobre as quais ela foi fundada, com coerção geofinanceira, isolamento e sanções. O sentimento de choque existencial prevalente entre quase todos os russos, sim, sugere fortemente que estejamos assistindo a algo bem profundo: um choque de valores civilizacionais à moda Fukayama (sic), que parece ser o que Sawyers está apontando.
Yves Smith |
Em certo sentido, essa tensão russa de algum modo ecoa aquela outra crise da Europa, crise – que também é de “valores e ordem” – que se vê no desafio que a Grécia trouxe à elite da UE. Como Yves Smith observou:
Esse incidente [o rompimento das conversações do Eurogrupo com a Grécia]sugere que está em curso uma luta muito mais básica, que não aparece diretamente refletida nas conversações da Grécia com a Troika. O governo grego e seus credores parecem ter visões fundamentalmente diferentes sobre o que a Grécia realmente tem poder para fazer.
De fato, a posição dos vários credores da dívida grega é que a Grécia já entregara parte significativa da própria soberania, se não toda ela, em troca do dinheiro do “resgate”. E os credores teriam fixado um sistema de arrecadação pelo qual a Grécia jamais conseguiria livrar-se das dívidas e obrigações.
Dito de outro modo: a Grécia, na visão dos credores, teria sido reduzida, submetida em vasta medida a autoridades da Eurozona, sobre as quais não há controle algum; e teria perdido todos os direitos e benefícios de ser parte de uma federação real – o principal dos quais é poder receber transferências fiscais.
Por seu lado, a Grécia tem a visão de que ainda é Estado e ainda têm direitos que não lhe podem ser tirados.
Se é essa a natureza subjacente do desentendimento, da qual as dificuldades na negociação seria mero sintoma, não há motivo algum para manter alguma esperança de acordo futuro, exceto se o governo do SYRIZA capitular. A Grécia está efetivamente pedindo uma mudança na ordem constitucional oculta: quer dizer, dos vários termos impostos nos acordos de resgate que outros estados periféricos tratam como cláusulas cogentes e irrevogáveis. Mudanças nas ordens constitucionais são difíceis, para dizer o mínimo; e quase sempre só acontecem via golpes ou guerras.
De fato, o SYRIZA está contestando as prerrogativas do microcosmo, assim como a Rússia desafia o macrocosmo. A Grécia contesta a ordem financeira (como se vê na priorização absoluta dos credores sobre quaisquer outros interesses, inclusive a própria realidade ou o sofrimento humano); e também desafia o modelo de governança – o neoliberalismo institucionalizado – que determina que a Grécia seja sangrada até que pague as dívidas que, avaliadas com realismo, são absolutamente impagáveis, e cuja cobrança esvazia qualquer aspiração que a Grécia tenha à soberania. E a Grécia também está desafiando a prerrogativa que teria aquela ordem financeira de coagir financeiramente (ameaçando com levar os bancos gregos à falência), para obter o que quer.
Syriza comemora vitória eleitoral |
Um analista sugere, com boa percepção da realidade, que a verdadeira luta da Grécia seria menos contra o Eurogrupo (o microcosmo), mas, de fato, mais, com o que há por trás dele: o “estado profundo” financeiro, desterritorializado, de Europa & EUA.
Para muitos, seria “irracional” desafiar esse “estado profundo” de Europa & EUA; e que a Grécia – para ser racional – teria de aceitar, no último momento, o que lhe ordena “Mr. Market”. Mas o que se tem visto no caso presente é que o partido SYRIZA não parece ser o velho partido social-democrático centrista, que sempre cede. E o argumento dele não é a velha dialética simplória do pró ou anti-mercado.
O argumento agora é mais complexo, sobre o quanto políticas monetaristas radicais, a manipulação pelo Banco Central Europeu e umas poucas formas de negociar operadas por uns poucos grandes atores de mercado distorceram o “mercado”, a ponto de o converterem numa autocracia global predatória e impermeável a qualquer mecanismo ou controle democrático.
Não surpreende portanto que essas duas crises (à primeira vista tão separadas e diferentes) – Ucrânia e Grécia – estejam se politizando muito rapidamente (cada dia mais gregos mostram-se mais abertos a Moscou que a Bruxelas, como mostram pesquisas recentes). Há sem dúvida uma correlação política entre todos os partidos políticos europeus que compreendem o sofrimento dos gregos e que se mostram mais ‘abertos’ para a Rússia.
Superpreocupados talvez com a questão da dívida e com o destino do euro, parece que perdemos de vista a questão política: o governo grego está desafiando o “sistema” União Europeia de modo muito fundamental (e a Rússia está desafiando o “sistema” global). Não surpreende que partidos políticos por todo o sul da Europa, também desencantados com a violência e a intolerância de Bruxelas, estejam prestando tanta atenção. Também eles, com certeza, já perceberam que o SYRIZA fez uma aliança com um partido da Direita, na construção de uma campanha comum anti-‘sistema’ (mesmo que, no longo prazo, esses caminhos tenham de se separar).
Esse quadro deve ter desencadeado arrepios de medo em muitos partidos europeus de centro, comprometidos com o arrocho [“austeridade”] e com a União Monetária Europeia.
Eurozona |
Muito provavelmente, é o medo – mais de contágio político, que de contágio financeiro – que está provocando reações nas euro-elites, que as fazem reagir com tanta fúria no caso grego. Mas a própria fúria, a irascibilidade, da resposta daquelas elites e dos líderes europeus, ameaça converter uma disputa econômica em disputa nacionalista – incendiando as chamas do nacionalismo (e do sentimento anti-alemão) por todo o sul da Europa e pelos Bálcãs.
Vê-se que os partidos euro-céticos no Reino Unido, França e Itália, inter alia, estão de olhos postos, acompanhando o destino da rebelião dos gregos. Nos Bálcãs, essas crises gêmeas também já convergiram na percepção pública, e estão reabrindo as feridas do desmembramento da Iugoslávia.
Para os sérvios, especialmente, a crise ucraniana desperta emoções de déjà vu: a Ucrânia está sendo instrumentalizada, ferramenta do desejo ocidental de castigar a “impertinência” e a “ousadia” da Rússia, como Croácia e Eslovênia foram instrumentalizadas, ferramentas do desejo do mesmo ocidente, de também castigar uma Sérvia que se “atrevia” a tender, também, a favor dos russos.
Yves Smith (acima) ecoa o ponto de Sawyer, de que desafios a valores coletivos ou à ordem estabelecida nunca são facilmente bem-sucedidos, e praticamente sempre só se consumam mediante conflito, que é o que torna tão intratáveis essas duas crises. O elemento comum a ambas é um desejo de recobrar a soberania assaltada pela ordem financeira e política global ou financeira: em outras palavras, o desejo de “ressoberanizar” os dois estados “contestadores”.
É bastante claro que os EUA não querem Rússia “ressoberanizada”, nem a Alemanha quer alguma “ressoberanização” da Grécia (seja por medo de criar um precedente para Espanha, Portugal e Itália, seja pelo custo político, para a Alemanha, de ver desmoralizadas a sua autoridade e a sua liderança na Europa).
E é nessa profundidade que as crises gêmeas na Europa têm laços que as conectam também ao Oriente Médio. Perguntado recentemente se via solução política para a Síria, o embaixador russo em Beirute respondeu que a crise ucraniana tornava improvável qualquer movimento nessa direção; o Moscow Times também citou um conselheiro do Ministério da Defesa, especulando que, no caso de os EUA armarem Kiev, a Rússia armaria o Irã.
Mapa da aliança de segurança da Rússia |
Mas, mais que esses links óbvios, a crise ucraniana – e a guerra geofinanceira desencadeada contra a Rússia – levou a Rússia a reagir no Oriente Médio, onde hoje trabalha conscientemente para reformatar a região como área mais multipolar e não denominada em dólares. Os três pilares atuais do Oriente Médio – Irã, Turquia e Egito – começam a interessar-se por construir laços mais firmes com China e Rússia e (em ritmos diferentes) afastam-se do comércio dolarizado, pelo menos nas transações entre eles mesmos.
Em outras palavras, qualquer escalada nessa dupla crise e em suas tensões inerentes incidirão diretamente sobre a capacidade de Europa e EUA mediarem conflitos no Oriente Médio, uma vez que Rússia, Irã, Egito e Turquia são, total ou parcialmente, atores chaves para ajudar a encaminhar solução nos atuais conflitos regionais.
Só para repetir bem claramente: a crítica que o presidente Putin faz contra a “ordem” global e contra os EUA estarem armando o sistema financeiro global encontra muitos ouvidos simpáticos por todo o mundo “não ocidental”.
E se a Grécia tiver de ser transformada em estado falido (para desencorajar os outros (pour décourager les autres [para desencorajar os demais, fr. no orig.]), se acelerará a tendência no Oriente Médio, de estados separarem-se do mundo unipolar, para caminhar na direção de multipolarismo mais bivalente.
A Grécia sempre foi membro do núcleo da União Europeia (é dos primeiros países que se uniram à UE – antes de Espanha ou Portugal); e a Grécia é membro da OTAN. Qualquer reorientação da Grécia na direção de Rússia e China (em busca de ajuda para enfrentar a saída do euro), ou a decisão dos gregos de se separarem da OTAN, dispararão ondas de choque por todos os Bálcãs.
Rota da Seda Sul (vermelho) e Rota da Seda Marítima (azul) (clique na imagem para aumentar) |
A China já especula sobre a possibilidade de estender sua Rota da Seda, seu corredor econômico, pela Turquia, pela Sérvia, até a Hungria (que desafiou “regras” da UE e recebeu o presidente Putin em Budapest). Há conversas também sobre um gasoduto que ligaria o novo “Ramo” Turco (que substitui o “Ramo Sul”) à Grécia, Sérvia e Hungria – e que correria talvez ao longo da projetada estrada de trens de alta velocidade e o corredor econômico chinês que ligará essa parte do sudeste da Europa.
Tudo isso acontecendo como o previsto, parte significativa do leste europeu estará já muito fisicamente orientada para, e conectada com, o Oriente Médio e, dali para a frente, também para/com Rússia e China.
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[*] Alastair Crooke, às vezes erroneamente referido como Alistair Crooke, (nascido em 1950) é um diplomata britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum, uma organização que defende o engajamento entre o Islã político e o Ocidente. Anteriormente, foi figura proeminente, tanto da Inteligência Britânica (MI6) como da diplomacia da União Europeia como conselheiro para assuntos do Oriente Médio de Javier Solana (1997-2003), no cargo de High Representative for Common Foreign and Security Policy da União Europeia. Foi ácido crítico da violência e saques militares contra os territórios palestinos e movimentos islâmicos de 2000-2003. Esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da Natividade, em Belém. Foi membro do Comitê Mitchell sobre as causas da Segunda Intifada, em 2000. Manteve encontros clandestinos com a liderança do Hamas em junho de 2002. É defensor ativo do engajamento do Hamas no processo de paz na Palestina, a quem ele se referiu como “Combatentes da Resistência".
Crooke estudou na University of St Andrews (1968–1972) do qual ele obteve um mestrado em Política e Economia. Seu livro Resistance: The Essence of the Islamist Revolutionfornece informações sobre o que ele chama de “revolução islâmica” no Oriente Médio, ajudando a oferecer insights estratégicos sobre as origens e a lógica de grupos islâmicos que adotaram resistência militar como uma tática, incluindo Hamas e Hezbollah. Seguindo a essência da Revolução islâmica desde as suas origens no Egito, através de Najaf, Líbano, Irã e da Revolução Iraniana até os dias de hoje, desbloqueando algumas das questões mais espinhosas que cercam estabilidade na atual paisagem do Oriente Médio
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[*] Conflicts Forum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás de narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.
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http://www.oactivista.com/2015/03/putin-15-anos-de-vitorias.html?m=1
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