A derrota da ex-secretária de Estado Hillary Clinton por espantosos 22 pontos percentuais para o senador Bernie Sanders em New Hampshire é ainda mais devastadora se olhada no contexto da história moderna dessa primeira primária nas eleições dos EUA: nunca aconteceu de alguém que tenha sido derrotado por tamanha diferença conseguir vencer as eleições e chegar à presidência.
Dentre os Democratas, ninguém que tenha perdido sequer pela metade da diferença que se viu em New Hampshire conseguiu recuperar-se a ponto de conseguir a indicação do Partido. Em 2008, Barack Obama perdeu por 2,6 pontos percentuais para Hillary Clinton; em 1992, Bill Clinton perdeu para Paul Tsongas por 8,4 p.p.; em 1984, Walter Mondale perdeu para Gary Hart por 9,4 p.p.; em 1972, George McGovern perdeu para Edmund Muskie por 9,3 p.p.
Em dois desses casos, New Hampshire favoreceu políticos da vizinhança – Sen. Tsongas de Massachusetts e Sen. Muskie do Maine – mas a diferença da 3ª-feira, de 22 p.p. a favor do candidato de Vermont Sen. Sanders não se explica simplesmente pelo argumento do "mais próximo do filho favorito". Sanders varreu praticamente todos os grupos demográficos, inclusive das mulheres, e só perdeu para Clinton entre os idosos de New Hampshire e o pequeno número de votantes não brancos do estado. A margem de Sanders entre os jovens é especialmente impressionante: 82%, praticamente a mesma proporção que se viu nos caucuses de Iowa semana passada.
Se Hillary Clinton ainda tem esperanças de superar a surra que levou em New Hampshire, terá de procurar encorajamento no legado do Republicano George W. Bush, que perdeu a primária de NH em 2000, para o Sen. John McCain, por 49% contra 30,2%. Mas até nesse caso a derrota que Bush sofreu não chega nem a uma lasquinha da derrota que os eleitores aplicaram a Clinton, na 3ª-feira.
O establishment preocupado
O fracasso de Clinton, cuja candidatura não engrena nem gera grande entusiasmo dentro do Partido Democrata, no que tenha a ver com indicá-la como candidata, gera um dilema para o establishment dos Democratas, porque já muitos peso-pesados estremecem ante o risco de Sanders, autodescrito como "socialista democrático" acabar por arrastar os Democratas ao tipo de desastre eleitoral que o Sen. George McGovern provocou em 1972.
Embora os Democratas tenham-se recuperado em 1976 com a vitória de Jimmy Carter, em pleno desconcerto Republicano com o escândalo de Richard Nixon e Watergate, os Republicanos logo restabeleceram o domínio sobre a política presidencial por doze anos, com Ronald Reagan e George H.W. Bush. Para os Democratas recuperarem a Casa Branca em 1992, foi preciso que aparecesse um "Neo-Democrata", o governador Bill Clinton de Arkansas, para reembalar a mensagem Democrata em trajes de economia "neoliberal" (antirregulações, livre comércio), para fazer frente às táticas Republicanas de tolerância zero, e rejeitando o "Governo Grande".
O presidente Clinton também enfatizou "micropolíticas", bem exemplificadas na ideia de introduzir "uniformes escolares", em vez de propor macropolíticas contra a pobreza e outros problemas estruturais que afligem os norte-americanos. Embora a economia tenha andado bastante bem no governo Clinton – sucesso que reduziu as pressões dos grupos liberais – ele também escancarou as portas para Wall Street e outros exageros pró-empresários (apoiando a desregulação das indústrias da finança e da 'mídia').
Naquele momento dos anos 1990s, as estratégias "neoliberais" ainda não haviam sido testadas na economia dos EUA e, assim, muitos eleitores foram apanhados com a guarda abaixada, quando aquele furor anti-regulações e a favor de livre comércio contribuiu muito para acentuado rebaixamento do padrão de vida da Grande Classe Média Norte-americana e inflou o que viria a ser uma Era Dourada para o 1% do topo.
As plenas consequências do neoliberalismo tornaram-se dolorosamente visíveis quando do Crash de Wall Street em 2008 e a resultante Grande Recessão. O sofrimento e a desesperança que hoje assolam tantos norte-americanos, inclusive a classe trabalhadora branca, levaram a uma furiosa rejeição política contra todo o Establishment político dos EUA, como o demonstram as candidaturas insurgentes de Donald Trump e Sanders.
Campanhas de 'legados'
Hillary Clinton (como Jeb Bush) enfrentam a má sorte de ter de conduzir campanhas de 'legados', num momento em que os eleitores estão furiosos contra os legados de ambas as "famílias reinantes", os Clintons e os Bushes. Embora Sanders seja candidato já maculado por suas viciosas prescrições de política externa, ele (como Trump) ergueu a bandeira da luta contra o Establishment num momento em que milhões de norte-americanos estão fartos doEstablishment e de suas políticas de autoajuda para as elites.
Em alguns sentidos, os resultados de Iowa e New Hampshire são o pior resultado para Democratas do establishmentDemocrata. A mínima vitória de Clinton em Iowa e a retumbante derrota em New Hampshire encheram de dúvidas os estrategistas Democratas, sem saber se devem alistar-se a favor dela – apesar da gélida recepção que os eleitores lhe têm dado –, ou se devem recrutar outro candidato, capaz de deter a avançada de Sanders rumo à indicação do Partido e oferecer opção "mais elegível" em novembro.
Se Clinton continuar a patinar, haverá pressão gigantesca dos líderes Democratas, para descartá-la a favor do vice-presidente Joe Biden ou, talvez, da Sen. Elizabeth Warren, convocados para a disputa eleitoral.
Se isso vier a acontecer – e é sabido que os Clinton jamais admitem derrota –, os Democratas poderiam passar por uma dinâmica política semelhante à de 1968, quando o Sen. Eugene McCarthy, contrário à Guerra do Vietnã, desafiou o absoluto favorito presidente Lyndon Johnson e chegou tão perto em New Hampshire, que o partido teve de convocar o Sen. Robert Kennedy para entrar na corrida – e convencer Johnson a anunciar que de modo algum buscaria a reeleição.
Muitos Democratas idealistas que apoiaram McCarthy naquela luta aparentemente quixotesca contra Johnson enfureceram-se contra a tática de "Bobby-chegou-atrasado", o que gerou uma guerra entre duas tendências anti-guerra dentro do Partido Democrata. Claro: a história da campanha eleitoral de 1968 foi tragicamente marcada pelos assassinatos de Martin Luther King Jr. e depois de Robert Kennedy, seguidos pela caótica convenção de Chicago, que entregou a indicação ao vice-presidente de Johnson, Hubert Humphrey.
Então, depois que o Republicano Richard Nixon sabotou secretamente as conversações de paz de Johnson para o Vietnã, Nixon deu jeito de derrotar Humphrey.
Por mais que a campanha de 2016 reflita EUA diferentes – e que a questão chave dos Democratas seja "desigualdade de renda", não a Guerra do Vietnã [ou qualquer das outras muitas guerras em que os EUA estão afundados hoje em todo o mundo] –, algumas semelhanças podem vir a ser óbvias, se o indicado presuntivo (Johnson em 1968 e Clinton em 2016) for expelido ou decidir abandonar a campanha.
Então, a escolha Democrata pode recair sobre alguém da fileira dos fundos (McCarthy em 1968 e Sanders em 2016) ou o partido pode buscar alternativa com mais 'visibilidade', como Biden, o qual (como Humphrey) garantiria continuidade com o atual presidente, ou Warren, que partilha muitas das posições de Sanders (como Robert Kennedy, com McCarthy), mas talvez seja mais palatável para "os chefes" do Partido.
Uma candidatura Warren pode também reduzir a decepção das mulheres que tanto queriam fazer de Hillary Clinton a primeira presidenta dos EUA. Mas no momento, a pergunta é: New Hampshire detonou a candidatura de Hillary Clinton, ou ela conseguirá ser o primeiro nome, em toda a história moderna da política nos EUA, que se recuperará de perda por 22% dos votos na primeira primária nacional?
Robert Parry, Consortium News
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Blog do Alok
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